Günther Von Hagens

Em abril de 2000, no caderno “Mais!”, da “Folha de S. Paulo”, publiquei a matéria “As formas da morte”, que divulgava e explicava a “plastinação”, uma nova técnica para a conservação de cadáveres desenvolvida há algumas décadas pelo anatomista alemão Gunther von Hagens, no Instituto de Anatomia de Heidelberg, na Alemanha. Através desse método, von Hagens substitui substâncias orgânicas de corpos mortos por materiais plásticos (silicone, resina de epóxi e poliéster), o que permite que os materiais molhados do corpo adquiram plasticidade, ou seja, permaneçam maleáveis, inodoros e secos.

Sem sombra de dúvida, Von Hagens teve uma grande idéia: o desenvolvimento de uma técnica de conservação que permite o estudo macrocósmico de cadáveres sem os incômodos odores ou as mudanças de tonalidade dos tecidos, normalmente produzidas pelas químicas de conservação tradicionais. Os estudos anátomo-científicos do corpo humano puderam ser, então, mais didáticos e esclarecedores.

Uma outra inovação, apontada naquele artigo, foi a introdução do público leigo nesse circuito científico, pois von Hagens decidiu transformar tal material de estudo em peças de exposições, organizadas sob o título de “Mundos do corpo”.

A primeira exposição, em 1995, aconteceu no Japão, atraindo milhares de visitantes. Na Europa, a inauguração de “Mundos do corpo” deu-se em 1997, em Mannheim, também superando a previsão de sucesso em número de visitantes. Desde essa época, as exposições já computaram o recorde de mais de 13 milhões de visitantes, a maioria atraída pelo fascínio que a visão do cadáver provoca e pela curiosidade de conhecer-se para além da superfície da pele.

Depois de visitar, em 2000, a exposição em Colônia, na Alemanha, e de uma entrevista com o anatomista, escrevi: “Mais do que uma aula de anatomia, o resultado produzido pelo trabalho do médico alemão é uma dessacralização ou ressacralização do corpo humano e, também, segundo ele, uma tentativa de democratização de suas formas e funções.
o visitante leigo, o efeito é assustador. Rostos curiosos, impressionados, passeiam pelo grande salão onde estão expostas mais de 200 peças, entre elas corpos fatiados nas suas extensões horizontal e vertical e órgãos sadios e doentes, que são mostrados em detalhes, com suas transparências, aberturas e plasticidades”.

Ao que parece, Von Hagens havia descoberto não só uma nova técnica de sucesso no embalsamento de cadáveres, mas também uma mina de ouro, já que, além do valor do ingresso das exposições de corpos, o anatomista recebe por um corpo embalsamado por plastinação 75.000 euros, ou seja, aproximadamente R$ 280 mil.

E, assim como choveram euros, começaram a chover também as críticas e as discussões sobre os cadáveres e as exposições, a começar pelas éticas e religiosas.

Rompendo as barreiras de um universo científico e artístico ao expor o cadáver como obra de arte, o anatomista se torna mais radical quando, em novembro de 2002, em Londres, realizou, na London´s Atlantis Gallery, a primeira autópsia pública, uma polêmica apresentação para cerca de 500 pessoas. Acusado de ser um show controverso e ilegal, Von Hagens, na época, se defendeu, alegando que o que faz é em nome de uma democratização da anatomia, ou seja, ele populariza uma prática usada nas escolas.

Uma outra leitura do trabalho do anatomista é a de que ele se transformou em um caso de polícia. Trata-se de uma denúncia feita pela revista alemã “Der Spiegel”, em 19 de janeiro de 2004, na forma de um artigo de 12 páginas com o seguinte título: “Dr. Morte. Os negócios macabros do expositor de cadáveres Gunther von Hagens”. O artigo acusava o anatomista de não deixar claras as regras desse trabalho, ou seja, a proveniência do material que usa e como constrói/esculpe os corpos. A matéria de capa de “Der Spiegel” denunciava o contrabando, o uso indevido e a comercialização inescrupulosa de corpos humanos feitas pelo médico alemão em nome de suas exposições artísticas de cadáveres, atualmente em dupla exibição, em Frankfurt e Cingapura.

Apresentando fotos que mostram empregados manipulando cadáveres em Dalian, na China, segundo a revista, “uma de suas três fábricas de cadáveres” (as outras duas são em Heidelberg, na Alemanha, e em Bischkek, também na China), citando documentos que foram levantados ao longo de uma pesquisa feita pela revista, bem como documentando através de extratos bancários e de declarações do anatomista e de seus empregados, a matéria acusava Von Hagens de construir um “autêntico mercado de cadáveres humanos, que funciona sob as mais simples regras do capitalismo: a compra de matéria-prima barata, seu manufaturamento a custos favoráveis e sua lucrativa comercialização”.

Traduzindo em cadáveres, segundo “Der Spiegel”, em documento levantado em novembro de 2003, “são 647 corpos completos”.

Além disso, o documento “afirma que foram enumeradas 3909 partes de corpos, como pernas, mãos ou pênis, e que foram catalogados 182 fetos, embriões e recém-nascidos, com números de série, tamanho, altura e sexo”.

À pergunta de onde vêm os cadáveres ou suas partes?, a revista respondia: “Gunther von Hagens não trabalha só com as doações de corpos, ele toma os corpos que consegue”. A matéria prosseguia, acusando esse “especulador de mortos” de comercializar, a baixos custos, além dos corpos doados, cadáveres de prisioneiros chineses executados em um campo militar perto de sua fábrica em Dalian.O artigo ainda acusava von Hagens de enganar os visitantes de suas exposições que acreditavam estar observando um verdadeiro e completo cadáver e assim estar sendo esclarecidos sobre seu próprio corpo. Segundo “Der Spiegel”, nada mais falso!

A revista descrevia que esse Dr. Frankenstein moderno, como em uma linha de montagem, vai tirando das prateleiras de suas fábricas pernas, braços e outras partes e órgãos mais perfeitos ou adequados para substituir aqueles defeituosos, pequenos ou pouco musculosos do cadáver que está montando.

Mostrando como funciona a cozinha de von Hagens, “Der Spiegel” escreveu que “até a ‘qualidade’ do cadáver é minuciosamente registrada. Cadáver nº 03MI0077 serve, por exemplo, somente como matéria bruta; para esse ‘corpo masculino inteiro’, com altura de 1,66 metro, foi verificado: ‘falta do olho esquerdo, pés e mãos danificados’. Por outro lado, foi registrado como material de primeira qualidade o cadáver 03FI093: feminino, altura de 1,67 metro, bons músculos, origem européia. Adequado para exposição”.

O artigo terminava com a profética visão von-hageniana de que o mundo só reconhecerá a grandiosidade de seu trabalho após sua morte e sua própria plastinação.

 

De vida e de morte

Aquilo que o anatomista Gunther von Hagens faz, “a plastinação de corpos humanos mortos”, pode ser observado sob um duplo ponto de vista.

Por um lado, tal procedimento revela-nos um pouco da problemática relação do homem com a vida, com seus mecanismos e com sua história. Por trás dessa nova tecnologia está um poder biológico, um domínio da vida, do corpo e de seu conhecimento que aparece no mundo ocidental já no século XVIII. Segundo Michel Foucault (“Direito de morte e poder sobre a vida”, em “História da Sexualidade”, 1988, Ed. Graal), esse foi um movimento de transformação ligado ao desenvolvimento do capitalismo. Trata-se do desenvolvimento de um poder-saber científico que transforma a vida e a perspectiva por onde se olha a vida e, conseqüentemente, a morte.

Através dos efeitos operados por esse conhecimento, entre eles uma reclassificação da vida e do corpo, ou um poder-saber sobre o corpo e a vida, observa-se como a ciência se apropria dos direitos sobre o corpo e a vida, subvertendo os antigos e tradicionais sistemas que a controlavam, como, por exemplo, aquele poder exercido, no passado, pelas áreas jurídica, religiosa, ou estadual, entre outras.

Tal domínio possibilita que o corpo possa ser hoje conhecido tal como é ou como se quer que ele seja. Isso significa que atualmente exerce-se uma soberania sobre o que é ou pode ser o corpo e a vida, que pode ser espelhada nas novas biotecnologias desenvolvidas para a conservação e o cuidado do corpo, da vida, da morte, bem como para a criação ou a transformação da vida.
Assim, o processo de plastinação de cadáveres de Gunther von Hagens também traduz esse atual momento de domínio que o homem faz de seu e de outros corpos, da vida e da morte. As novas possibilidades de leitura e manipulação do corpo (do vivo e do morto) parece ser um fenômeno global, que todos nós, em diferentes contextos, fazemos, procuramos conhecer e consumimos.
Tecnologias de transformação do corpo, como as desenvolvidas pela cirurgia plástica, de substituição de órgãos ou partes do corpo, como as empreendidas nos transplantes, nas inserções protéticas, ou o conhecimento biogenético e farmacológico que permite o controle e a criação artificial de vida ou seu prolongamento são outros exemplos do momento histórico que construímos e que vivemos.

Esse mesmo processo de manipulação do corpo e da vida, que está na ciência e na tecnologia por ela criada, promove, por outro lado, a transformação desse corpo em um objeto, em uma coisa ou mercadoria, na medida em que o corpo se transforma em matéria que consome a si mesma e que é consumida: os cadáveres “plastinados” pelo dr. von Hagens, por exemplo, expostos em museus, foram concebidos para, além de possibilitarem um estudo macrocósmico do corpo humano, serem consumidos enquanto imagem e vendidos como mercadoria. Afinal, o grande número de visitantes das exposições de cadáveres aponta que estamos lotando os museus, que queremos nos ver do avesso, ou que temos algum fascínio pelo mórbido ou pelo grotesco.

Dito de outra maneira, aquilo que, segundo Foucault, era objeto de saber para a análise clínica de muitas doenças, ou seja, o cadáver, transformou-se, nas exposições “Mundos do corpo”, em um show, ou em um caro e bizarro objeto de consumo.

Mas, “Mundos do corpo”, segundo a revista alemã, aponta para uma outra constatação: a de que esses cadáveres foram secretamente montados. Significa que o que Von Hagens apresenta como uma “democratização da anatomia”, ou seja, como um estudo científico e anatômico do corpo humano, é uma montagem, pois se trata de um objeto feito da soma de partes de corpos humanos, unilateralmente definidas por ele para agradar ao público. Essa manipulação do corpo humano levanta uma questão ética, a dos riscos do uso indevido desse corpo, e uma questão legal, que é a sua comercialização -problemas que a matéria publicada em “Der Spiegel” denuncia e recrimina.

Apontada a falsificação, o jornal “Frankfurter Allgemeine” publicou, em 28 de janeiro último, um esclarecimento dos professores do Instituto de Anatomia da Universidade de Heidelberg, que se manifestaram estarem distanciados do projeto de exposição de cadáveres, alegando que o que Von Hagens apresenta está longe de ser uma didática e aceitável informação. Segundo a matéria, “aquelas pessoas que procuram a exposição por terem de fato interesse na anatomia humana, pagam para serem enganadas”.

Uma vez que os valores éticos de uma civilização são construções determinadas pelo tempo, pela cultura, por hábitos e crenças, está claro que um redimensionamento das idéias de corpo, de vida e de morte vem acontecendo, juntamente, com o dos valores éticos e morais que os acompanham.

Assim, apesar da oportuna inovação tecnológica e da arrojada ampliação que faz do conhecimento anatômico do corpo humano, expandindo seus domínios para a arte e para o público leigo, parece que o maior problema de Von Hagens tem sido não revelar o histórico do restauro dos cadáveres, não ter deixado claras as regras de procedência e construção dos corpos, fazendo com que a idéia da exposição de cadáveres restrinja-se à idéia do espetáculo e à concepção de um grande negócio, dada nossa fascinação por nós mesmos.

Texto de: Maria Teresa Santoro

Doutora em comunicação e semiótica pela Universidade Técnica de Berlim e professora de comunicação e linguagem na Universidade São Judas Tadeu (SP).